Não se tem quase nada de material para uma abordagem aprofundada sobre o dia a dia de Jabes. Porém, algo que é de muita importância para uma melhor compreensão da perícope e sua mensagem é a análise do nome dentro da cultura hebraica. Pois, os nomes no Antigo Testamento tinham muita importância para o dia-a-dia do povo hebreu, ou seja, a própria genealogia não era uma simples relação de nomes; mas, ao que parece, segundo Gardner (1999, p. 291) ela abria um caminho para a coroa da sobrevivência. Ou seja, o nome dentro do contexto hebreu tinha uma ligação muito forte com a vivência da pessoa e seu futuro.
Ainda, segundo de Vaux, “…entre os povos primitivos, o nome em todo antigo Oriente define a essência de uma coisa: nomeá-la é conhecê-la, e, portanto ter poder sobre ela (…) podendo beneficiá-la ou prejudicá-la (daí os nomes tabus entre os primitivos e os nomes secretos entre os egípcios) (…) como o nome define a essência, revela o caráter e o destino daquele que o tem. O nome vem a ser a expressão de uma esperança, ou um símbolo que se procura decifrar com etimologias afins. (DE VAUX, 2003, p. 66s)
Desta forma, dependendo do nome, o indivíduo passava a ter uma concepção diferente da vida. Quando o nome era otimista, a pessoa tinha uma boa auto-estima, vislumbrava futuros melhores, encaravam os desafios com mais coragem e determinação. Porém, quando se tinha um nome negativista, encaravam, em muitos casos, como uma maldição. E por toda a vida carregavam esse peso; ou até que sua “sorte” fosse mudada.
A Análise Semântica
Neste tópico será abordado questões relacionadas com a comparação entre algumas versões em português e as principais impressões teológicas obtidas ao analisar o texto escolhido. As versões selecionadas para esta análise são: EP (Edição Pastoral, editora Paulus), ARC (João Ferreira de Almeida, Revista e Corrigida), NTLH (Nova Tradução na Linguagem de Hoje) e XXI (Almeida Século 21).
- Comparação entre Algumas Versões do Texto de 1 Crônicas 4: 9,10
No verso 9, todas as versões analisadas de mostraram dentro da mesma linha. Embora nenhuma tenha se preocupado em explicar o significado do nome Jabes, a NTLH e a XXI foram um pouco mais clara. Principalmente quando enfatiza que a mãe de Jabes havia sofrido muito no parto. Pois a palabra em hebraico ‘otseb tem em seu principal significado um estado de sofrimento mental e emocional (BOTTERWECK, RINGGREN & FABRY, 2001, p. 279.), traduzido pela maioria das versões como angústia.
Já no verso 10, a versão ARC não foi feliz ao manter a expressão “Se”, pois da forma em que fez passa uma ideia de condicional (“Se me abençoares muitíssimo e meus termos amplificares, e a tua mão for comigo, e fizeres que do mal não seja aflito!”); não há no texto nenhum indício de resposta a esse possível condicionamento. A versão BJ foi mais feliz neste quesito, conseguindo traduzir bem o conceito hebraico, mesmo usando o “Se” (“se efetivamente me abençoares, disse ele, aumentarás o meu território, tua mão estará comigo, farás que se afaste o mal e minha dor terá fim”). Mas, assim como a EP erraram ao indicar que Jabes estava passando por dores quando acrescentaram à sua oração a frase: “pondo fim a minha dor”.
Além disso a expressão ’im traduzida pela maioria das versões pela conjunção se, quando utilizada em conjunto com o verbo infinitivo no Piel, seguido do mesmo verbo declinado e também no Piel, ela tem uma conotação adverbial “quando” e não conjuntiva. Assim, uma melhor tradução para a parte b do verso 10 seria “Quando me abençoares” e não como tem sido traduzido, pelas versões, “Se me abençoares muitíssimo”. Diante disso o aprendizado que se pode ter com esta mudança é que a resposta à oração de Jabes não esteve condicionada a nada de sua parte. Mas em sua oração ele demonstrou ter fé que quando seu Deus interagisse em sua história, teria sua tragédia revertida.
- Impressões Teológicas da Perícope (1 Crônicas 4: 9,10)
Apenas o verso 10 contém material para esta análise. No qual se pode perceber, segundo Jabes, que Deus é um ser que pode ser invocado. O que Smith chamaria de um Deus acessível (2001, p. 91). Em outras palavras, aquele que busca a Deus pode orar pela bênção divina. E esta diz respeito tanto para o presente como para o futuro e ainda pode ser de âmbito material (Jabes solicitou terras), como também espiritual (pediu intimidade) e de proteção (ele rogou que Deus o livrasse de qualquer mal que o afligisse).
A palavra para referir-se a Deus é ’elohym. A qual pode ter sua origem em ’lh (cuja raiz é temor), em ’wl (advérbio expressando esperança, súplica, temor) ou ainda a partir de ’elohah. Podendo se referir a deus (pagão ou falso), ao Deus de Israel ou ainda a alguém poderoso; referindo-se ainda, mesmo que de forma rara, a homens ou aos anjos. (HARRIS, 1998, p. 68). E “quando se refere ao verdadeiro Deus, ’elohym, funciona como sujeito de toda atividade divina revelada ao homem e como objeto de todo o temor e reverência genuínos por parte do homem.” (HARRIS, 1998, p.72). Ele é denominado como “Deus de Israel”, em total sintonia com o que os teólogos vão trabalhar quando mencionam as palavras eleição e aliança.
Outra característica bem marcante no texto hebraico, mas às vezes omitido nas versões em português: é Deus quem atende a oração se seu servo. Ele é quem faz com que se cumpram as coisas. Jabes foi um alvo da ação divina e não um coadjuvante ou participante, como parece transparecer na expressão “Jabes suplantou a seus irmãos” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002, p. 554).
- Análise das Palavras ou Frases importantes
“Jabes” – Este nome tem como raiz um significado bastante negativo: “Tristeza, dor, pesar, aflição, angústia”. Deve-se lembrar, como visto anteriormente no ítem 2.3, da importância que o nome tinha para a cultura hebraica no Antigo Testamento. Ou seja, o nome tinha uma ligação muito forte com a vivência da pessoa e seu futuro (inclusive através de seus descendentes). Desta forma, alguém com um nome tão negativista, como Jabes, dentro de sua cultura estava, normalmente, fadado ao fracasso e à ruína. Alguém sem esperança de um vislumbre melhor.
“Foi honrado dos irmãos” – A Septuaginta traduz como “foi mais glorioso”, enquanto que o Talmude como “mais sábio”. (CHAMPLIN, 2000, p. 1585) De certo modo, pode-se crer que há consenso em que Jabes se tornou o mais notório dentro de sua parentela, tendo em vista que a palavra ’ah não se limitava apenas a irmãos sanguíneos. O que há de se destacar, a partir do original hebraico, é a ação do verbo que está no Nifal, indicando, pelo contexto, que Jabes teve sua vida modificada para melhor, sem sua ação ou participação.
“Dei à luz em angústia” – É bem provável que a mãe de Jabes sofreu sérias complicações durante o parto. E sem intenção, ao inverter as duas últimas letras da palavra i ‘otseb (que significa dor, fadiga, angústia) (KIRST, 2007, p. 185) acabou dando um nome não muito agradável a seu filho. O que acabou servindo-lhe como uma pesada “maldição”.
“Jabes invoca o Deus de Israel” – A invocação feita por ele é de um verbo simples, conjugado numa família comum (QAL); nada de relevante na ação em si. A palavra no original para Deus é ’elohym e apesar de várias possíveis traduções, ela é frequentemente usada como Juiz, procurando descrever o “Deus que julga” (Sl 50.6; 75.7,8) ou “Deus que julga a terra” (Sl 58.11) (HARRIS, 1998. p. 72). Muito provavelmente fazendo uma menção de que o Deus de Israel, o poderoso, é quem poderia julgar ou dar o veredicto acerca de sua vida e seu futuro.
“Deus fez que se cumprisse aquilo que ele pediu” – Embora, apenas pelo verso 9 possa pairar a dúvida se Jabes foi honrado ou se ele a si próprio honrou, no finalzinho do verso 10 fica evidente que o autor da transformação na vida de Jabes foi Deus. Foi Ele quem fez com que Jabes se tornasse o mais respeitado dentre os seus irmãos. E isso é deveras significativo; pois “num tempo em que a maldade de um nome podia, na opinião popular, somente ser contida pela aplicação ‘mágica’ de outro nome (cf Gn 35:18), o cronista revela que a oração sincera podia ser até de efeito maior”. (ALLEN, 1986, p. 333.) E deixa bem claro que foi Deus, quem mudou a história de Jabes, respondendo sua prece.
“A oração, em si.” – Jabes inicia sua prece com uma preposição que geralmente indica condição ou desejo. Todavia, nossa tradução “quando de fato me abençoar” é concordante com a gramática hebraica que altera o sentido daquela conjunção para um advérbio, pelo fato de estar ligada a um verbo usado duplamente como Piel. Assim, em vez desta condição ou desejo para com a bênção de Deus, serve como uma declaração de fé: Quando seu Deus for favorável a Jabes, automaticamente as demais coisas acontecerão. Ainda, tendo em vista que na continuidade não há indícios de nenhum condicional, a única alternativa ou “motivação” para sua petição é a certeza de que Deus pode socorrê-lo e ao mesmo tempo um “desejo” de que isso aconteça. Desta forma, na busca de auxílio para que sua vida tivesse um destino diferente daquele proposto por seu nome, roga a Deus que o ajude. Diferentemente do que se tem ouvido por aí, ele não foi ousado, nem determinado e muito menos contumaz ou egoísta. Simplesmente foi um homem desejoso de se livrar de uma “maldição” e que cria que seu Deus poderia fazer isso. Em outras palavras, sua oração, propriamente dita, foi simples; abrangente, mas simples. Nem tão pouco usou de seu pensamento positivo. Pois embora na época, a palavra tenha uma conotação um tanto mágica, sua oração foi uma prece e nada mais.
“Quando me abençoar muito” – Somente a bênção do Senhor, e na mentalidade da época: de forma abundante, poderia reverter um grave problema herdado, resultado de uma sentença dada por sua mãe, ao nascer.
“Aumentarás o meu território” – Embora denote a benção material da riqueza, muito provavelmente, tenha mais sentido sob o enfoque da alegria de se ter uma família grande (e para isso a necessidade de maiores territórios); pois nesta época da história dos hebreus, ainda não era comum a ideia de possuir posses apenas pelo “status” que isso viesse a proporcionar. Outro aspecto positivo a ser levado em consideração, é que naquela época, as bênçãos materiais serviam como testemunho da bênção do Senhor; e a falta delas eram indícios de que o indivíduo não havia alcançado o favor divino. Não ser próspero já era um indicativo popular de que Deus não estava abençoando e com um nome tão negativo, era inevitável pensar em tamanha fatalidade e desgraça.
“estenderás a tua mão para mim” – Pedindo proteção, através da presença do seu Senhor. Aqui, de forma implícita, pode estar a sua disposição em responder a Deus através de sua subserviência. Pois para aquele que se estende a mão, o protegido, automaticamente cria-se um vínculo de dependência.
“Me protegerá do mal” – Não deve ser nada fácil viver com medo de um “fantasma”. Com uma sentença tão forte contra sua vida, possivelmente ele vivia amedrontado de que a maldade pudesse vir sobre ele a qualquer momento ou de qualquer lado.
Enfim, pode-se concluir sobre sua oração a percepção de alguém desesperado, que ora de uma forma muito simples, expondo suas dificuldades a Deus, suplicando que Este, o ajude. Se algum aspecto positivo pode ser atribuído a Jabes, seria uma fé de que a bênção de Deus poderia reverter qualquer situação. Mas, nada a mais que isso. Continuaremos nossa análise no próximo artigo!
REFERÊNCIAS
ALLEN, Clifton J. Comentário Bíblico Broadman: I Samuel – Neemias. Rio de Janeiro: JUERP, 1986.
BHS. BÍBLIA HEBRAICA STUTTGARTENSIA. 5 ed. Editada por K. Elliger e W. Rudolph. Printed in Germany, 1997.
BÍBLIA SAGRADA. Almeida Século 21: Antigo e Novo Testamento. Coordenada por Luiz Alberto Sayão. São Paulo: Vida Nova, 2008.
BÍBLIA SAGRADA. A Bíblia de Jerusalém. Coordenada por Gilberto da Silva Gorgulho, ett all. São Paulo: Paulus, 2002.
BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. Direção Editorial de José Bortolini. São Paulo: Paulus, 1991.
BÍBLIA SAGRADA. Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil. 2000.
BOTTERWECK, G. Johannes; RINGGER, Helmer; FABRY, Heinz-Josef. Theological Dictionary of the Old Testament. Translated by David E. Green. Grand Rapids / Cambridge: William B. Eerdmans Publishing Company, 2001. vol XI.
CABRAL J. Introdução Bíblica. 2 ed. Rio de Janeiro: Universal Produções, [19–].
CHAMPLIN, O Antigo Testamento Interpretado Versículo Por Versículo. São Paulo: Hagnos, 2000. Vol 3.
________, O Antigo Testamento Interpretado Versículo Por Versículo. São Paulo : Hagnos, 2000. Vol 6.
DAVIS, John D. Dicionário da Bíblia. Rio de Janeiro : JUERP, 1996.
DAVIDSON, B. The Analytical Hebrew and Chaldee Lexicon. London: Samuel Bagster and Sons Limited, 1966.
DE VAUX, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo : Teológica, 2003.
GARDNER, Paul. Quem é Quem na Bíblia Sagrada: A história de todos os personagens da Bíblia. São Paulo : Vida, 1999. 2ª ed.
FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica. Introdução ao texto massorético, guia introdutório para a Bíblia Hebraica Stuttgartensia. 3. ed. São Paulo: Vida Nova, 2008.
HARRIS, R. Laird. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo : Vida Nova, 1998.
KIRST, Nelson; ett all. Dicionário Hebraico-Português e Aramaico-Português. São Leopoldo: Sinodal e Vozes, 2007. 20. ed.
RÖSEL, Martin. Panorama do Antigo testamento. História, contexto e teologia. Tradução de Nelson Kilpp. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2009.
SELLIN, E.; FOHRER, G. Introdução ao Antigo Testamento. Vol 1e2. Tradução de Mateus Rocha. São Paulo: Academia cristã/ Paulus, 2012.
SMITH, Ralph Lee. Teologia do Antigo Testamento. História, método e mensagem. Tradução de Hans Udo Fuchs e Lucy Yamakami. São Paulo: Vida Nova, 2001.
WILKINSON, Bruce. A Oração de Jabez. São Paulo: Mundo cristão.